domingo, janeiro 09, 2011

O fim

Alguns cortes são insuturáveis, algumas dores inevitáveis. O amor é, de fato, uma faca de dois gumes; mas só muito depois percebemos que ambos ferem. Rasgam, esmiúçam, destroem uma história inteira por muito pouco, ou quase nada. Vai ver o amor já estava saturado, vai ver foi a rotina, a vida, as circunstâncias. Vai ver o amor acabou aquela noite, depois daquela briga. Vai ver só os corpos permaneceram juntos, como era costumeiro; as mãos ali entrelaçadas, mas frouxas; os beijos, assim rápidos, descompassados, desconhecidos.

É. Vai saber o que aconteceu. Dois anos depois e não sobrou nada, nem coragem de se enfrentar cara a cara pra dizer: terminou, boa sorte. Não. Dois anos e muitos planos depois e o amor acaba por intermediários. É triste, patético até. Duas pessoas tão destinadas ao sucesso emocional se depararem completos estranhos.

E na separação, os amigos são divididos; as fotos e as mensagens deletadas; as lembranças rasgadas ao meio e, de alguma forma, a mágoa é o que sobra de mais concreto de uma história tão bonita. Quem errou, já não importa. O fracasso, assim como a felicidade, só é possível com dois.

Esse eu, como me conhecem, não existe mais sem o outro. Sobrou só alguém calejado e sozinho demais para lutar por um outro agora. O amor é uma faca de dois gumes, eu te disse. Pode te extasiar ou arrancar o que há de mais bonito em você. Em mim. Em nós.


"And that is it

There's no way

It's over

Good luck"

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Intimidade

Eu gosto é do abraço sincero. Quando todos os músculos do outro corpo se empenham em dizer “obrigado”. Há poucos que conseguem abraçar dessa maneira – a maioria tem medo de se expor, de desabrigar o próprio espírito para acolher outro.

Eu gosto de abraços sinceros. Assim, no plural. Um longo abraço pode dizer tantas coisas que vale por uma dezena de abraços. Já percebi que apesar de usarmos os braços é o peito aberto e quente que transmite e absorve os sentimentos.

Eu gosto, particularmente, dos abraços que dizem “saudade de você”, que dizem “queria que você ficasse um pouco mais”, e as palmas das mãos se abrem, os dedos comprimem com força contra as costas, em uma tentativa desesperada de dizer palavras que ainda não foram escritas. Falta semântica que explique o que um abraço sincero pode fazer ao final de um dia estafante. Porém, como as mais variadas expressões humanas, como o amor, o sexo e a arte, é preciso dois. O abraço só deixa de ser mera formalidade cotidiana quando ambos se permitem dizer o que sentem por dentro, o que mais ninguém tem conhecimento.

Quando o meu abraço é de fato sincero, eu fecho os olhos. É involuntário. Acredito que neste momento as almas, se ambas estão receptivas, se conectam de uma forma que a ciência não pode explicar. É mais profundo do que seguir o sistema endócrino do corpo humano. É tão íntimo quanto o beijo, e é por isso que beijamos de olhos fechados: para saborear da melhor maneira possível a entrega e a conquista, sem interrupções externas.

Abraçar e beijar verdadeiramente é ficar cego, surdo e mudo para o resto do mundo.

sábado, novembro 27, 2010

À Gisele Viviane Rocha Moretti

Neta de Cecília Leão Rocha, filha de Reginalda Leão Rocha Moretti, irmã de Rita, Alexandre, Janaína e Júnior, esposa de Cícero, mãe de Lucas Fernando, tia de Gabriela, Isabela, Júlia e Eduarda.

Gisele floresceu no dia 23 de agosto de 1965 e viveu com alegria durante 45 primaveras. Faleceu no dia 25 de novembro de 2010, às 13h30 da tarde, quieta, tranqüila, em paz. Gisele lutou contra um monstro maligno e egoísta chamado câncer por três meses. Porém, a lembrança mais vívida que tenho não é do rosto nem do corpo que a doença consumiu: a minha lembrança mais vívida é da classe com que ela sabia tomar um copo bem cheio de coca-cola e do som que ela fazia quando sentia o sabor de algo delicioso, das mãos delicadas que folheavam meus trabalhos de escola e dos pés de princesa que nos guiavam por São Paulo, do cabelo cheiroso e do sorriso que enchia uma casa inteira.

Os aniversários não serão mais os mesmos, nem os natais, nem os finais de semana, nada. A minha tia metida, xarope, folgada... A tia que me viu nascer, crescer, namorar... A tia que esteve presente na minha vida durante os meus dezenove anos de idade, deixou um silêncio e um vazio imenso.

Um vazio, uma falta e uma saudade que, por e­nquanto e por um bom tempo, terá o gosto salgado da lágrima e o som da vida sem a voz dela, de suas frases típicas. Uma falta que vai vestir camisola de manga-cumprida porque sente muito frio, vai morar numa bacia e vai comer igual passarinho. Uma saudade que vai se transformar em sabiá e sair voando, toda maquiada e bem vestida para uma festa no céu, onde só terá do bom e do melhor.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Aos pés do asfalto

Penso em você, constantemente. Pensei em você hoje, andando com pés vermelho sangue de um lado para o outro, dentro de quatro paredes feitas de um mármore vagabundo num espaço infinito de menos de um metro quadrado. Pensei em você hoje, em te ligar. Ainda tenho seu número, sabia? Quer dizer, provavelmente nem é seu número mais. Faz tanto tempo. Mas ainda o tenho. Nunca soube o motivo. Não mesmo.
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Mas hoje, andando de um lado pro outro depois de ter atravessado um mar de concreto nos curtos intervalos do fluxo de seres velozes, eu pensei em você. E de repente - já anos depois, imagine só - tossi o motivo entalado na garganta, e ele saiu assim:
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Ainda penso em você porque, quando tudo que é concreto na minha vida - nessa minha minha vida sem vestígio de você -, quando tudo isso desaparece, foge pelo acostamento da rodovia, só me resta o apego as coisas que não existem. Porque as coisas mais bonitas do mundo só são bonitas enquanto não existem.

domingo, julho 18, 2010

Drowning on Dry Land


Comecei a fazer cachecóis. E tenho essa teoria de que, pessoas que se dedicam subitamente a arte da tecelagem precisam, desesperadamente, de silêncio, de ouvir os próprios pensamentos e argumentar contra eles, de refletir. Estou no meu sexto cachecol em menos de duas semanas e duas viagens – uma à praia; outra às montanhas – e, embora essa nova ocupação tenha me deixado um pouco solitária e menos de bem com a vida, ela me fez reencontrar uma antiga persona de mim mesma, desaparecida há pouco mais de um ano.

Essa faceta é um pouco mais ácida, mais indiferente, menos sorridente e, de alguma maneira, mais eu do eu mesma tenho sido. Você sabe o que eu quero dizer. Aquela sua persona que quer mandar seu chefe à merda, faltar no trabalho pra jogar vídeo-game e comer passatempo recheado com toddynho, ir de pijama pra faculdade, ultrapassar o limite de velocidade, dirigir sem rumo, deitar de barriga pra cima no meio da Avenida Paulista, pegar um ônibus e nunca mais descer dele...

E todas essas coisas que as pessoas fazem quando a sua vida está inacabada, mas já chegou ao fim. Não que eu tenha câncer ou vá me matar, mas... Às vezes, você também não se pergunta se é só isso? Digo, dirigir não é tão “highway to hell” quanto eu queria e ser funcionária pública é tão inútil quanto eu pensava. Sobra a faculdade, que ainda me desafia e me faz criar grandes expectativas em relação ao meu futuro brilhante, mas é isso. Pra eu me tornar uma mulher madura só falta o casamento e a maternidade.

E quanto a ir de mochila pro Peru, dormir na estrada, deitar sobre as linhas do deserto de Nazca, fazer uma tatoo no Miami Ink, tirar uma foto com o Obama, apresentar a entrega do Oscar, saudar a Rainha Vitória, escrever um Best-seller e , ao final, me tornar um vampiro imortal que brilha na luz do sol? E pra onde tudo isso vai?

Comecei a fazer cachecóis. E agora entendo porque os mais vividos acham a juventude tão bonita: porque só agora percebo quão bonito é ter essa ingenuidade e essa crença cega no fato de que você vai mudar o mundo e não vai, de forma nenhuma, acabar como seus pais: casados, profissionalmente realizados, com filhos, previdência privada e uma vontade enorme de ter feito tudo diferente.

terça-feira, julho 28, 2009

Desespero Estrangeiro

Society doesn't give a fuck if you don't have time or missed the damn bus. If you don't have what they want, you just gotta make it. Otherwise, you're just awfully weak and end up replaced by some other guy, not because he or she had something special, but because they're experts at accepting the sistem's features.
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I know, you already got bored or atonished by my terrible english grammar. But before you close the window, come a little longer, just because you wanna show what mercyful human-being you are. Come along, all your futile issues can wait! And that's your dead line if you wasn't bored yet. And even you, should finish that "last-week" post.
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"That's the world, that's how it works", you'd say, sounding as hopeless as myself. But I'm too young to give it up, and too foolish as well. However, I'm way too tired of fighting. I'm eighteen years old and I just wanna rest, I want a break. I wish I could live far, far away of this mess, with chocolate and limon-tea, maybe a dog to make company.
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Is that normal? Am I?
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I know, there are no news at all. You're sick of it too. I'm not gonna tell you something that you don't know, I'm not gonna change your life, because I admit it: I don't have the guts. I'm not Martin Luther King, The Beatles and - for god's sake - I'm not Michael Jackson! I'm not gonna rock your world...
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Faithless, I ask you: don't you think I'm too young to surrender and accept it? Am I not supposed to feel the thriller of the raising of my generation? The becoming a woman? Am I not suposed to matter?
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Because I think so.
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And what I really want with all this?
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I want to have a choice.

quinta-feira, abril 16, 2009

Ao jovem de hoje, um lembrete

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.....Há um século atrás, letrado era o filho do fazendeiro rico, do banquerio, talvez. O jovem dessa época, herdeiro da soma das gerações, não tinha "Guia do Estudante", "UOL Vestibular" e muito menos orientação profissional. As opções eram escassas - ou melhor, eram duas: médico ou advogado. O importante, de fato, era voltar da Europa ou dos Estados Unidos sendo chamado de Doutor.
.....Hoje, porém, mais de cem anos, duas guerras e outras catátrofes depois, os tempos são outros, muito mais modernos. A carroça virou helicóptero, o escravo virou doméstico e o jovem tem como livro de cabeceira "Sucesso Profissional em 10 Lições", "O Segredo", "Use Filtro Solar" e, na parede do quarto pôsters do Al Gore, do Roberto Justus e do novo messias, Obama.
.....O fato é que, ainda hoje, o herdeiro daquele enorme latifúndio, herda agora impérios comerciais da "Dolly" ou das "Casas Bahia". Logo, acaba por fazer uma faculdade de administração qualquer para tornar-se a versão fã de "Friends" e viciada em Yakult de seus próprios pais.
.....São poucos os jovens que levam em conta suas aptidões, seus objetivos e - imagine que absurdo! - suas próprias vontades, sonhos e ânsias. É chegada a hora do jovem de hoje espelhar-se naquele outro jovem de algumas décadas atrás que, sem poder desculpar-se pela pouca idade, fez escolhas tão mais difíceis do que a escolha profissional e lutou pelos ideais em que acreditava com unhas, dentes e flores para que, hoje, tenhamos a liberdade para sermos o que quisermos, quando quisermos, da maneira que bem entendermos.
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Simulado de Redação da Fuvest 2010 - Anglo - Nota: 10 (dez)
Comentários do corretor: Ótimo texto. Continue assim: ácida!
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Obrigada, obrigada. Também amo vocês.

domingo, fevereiro 08, 2009

Red Code

Talvez seja apenas eu. Mas quando a situação, ou melhor, situações da sua vida encontram-se numa encruzilhada, num daqueles momentos decisivos em que o vilão está para apertar o botão vermelho e implodir o seu pequeno mundo, eu fico esperando meu herói aparecer derrubando uma porta ou quebrando a vidraça da janela, mas ele não vem. Meu herói sou eu mesma. E quando finalmente, após muito bang-bang, aquela ameaça terrível está para ter um fim, eu simplesmente fico estática. Catatônica até. De repente esqueci ou nunca soube qual fio cortar para desativar essa bomba chamada maturidade.
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Porém, se você olhar de longe, à uma distância de dois ou três oceanos, e analisar racionalmente, a solução é bastante simples. Existem apenas dois fios: o verde é o cordão umbilical que me conecta aos meus pais e à minha vida até agora; o prateado alucinante é o que me conecta a um túnel escuro, este fio me arrasta não importa o que eu eu faça ou o quanto eu queira me agarrar ao fio verde, cada vez mais fundo neste túnel eu entro, às cegas, tateando as paredes inconcretas e deslizando pelo chão inconsistente. Enquanto avanço involuntariamente, o caminho já atravessado ilumina-se e é transformado em fio verde por alguma razão que desconheço. Pelo caminho, vezenquando, vozes surgem e me alertam: "Aqui começa o Futuro! Aqui começa o Futuro!"
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Começa aqui, mas é só tomar mais um trecho de escuridão que começa acolá. De início eu pensei estar andando em círculos, talvez este fosse um daqueles labirintos elaborados, ou matrix, ou um disco riscado. Mas enquanto o tempo me arrasta, há muito de mim ficando pra trás. É cada vez mais pesado e difícil carregar tudo que é transformado em fio verde. E eu quero tanto, tanto descobrir pra onde é que esse prateado deslumbrante vai me levar.
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Um dia desses, enquanto eu estava muito ocupada decidindo o que era pergunta e o que era resposta, alguém gritou:
- Você precisa usá-lo!
- Como assim? Usar o que?! - perguntei de volta.
- Usar o prateado pra iluminar! Iluminar o passo seguinte! - a voz respondeu, quase sumindo no final.
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O problema dessas vozes é que, além de não resolverem nada, nunca ficam pra conversar. Fiquei tão irritada que nem me incomodei em pensar no que a voz havia dito. Afinal, que graça tinha essa escuridão toda? É bem mais bonito olhar pra trás onde as pessoas e os momentos não se escondem, onde eu tenho certeza do que vou encontrar e onde, mesmo que repouse meus olhos na escuridão ou no passo seguinte que eu também não vejo, quando voltar a olhar em direção ao fio verde, tudo estará como eu deixei. O ruim é que, quando comecei a reparar nos detalhes, existem coisas que eu gostaria de ter mudado de lugar ou jogado pra dentro da escuridão desse túnel maluco para, quem sabem mais à frente, ter uma idéia melhor do que fazer com elas. Nesse instante ouvi, pela centésima vez: "Aqui começa o Futuro! Aqui começa o Futuro!"
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Não pensei duas vezes. Segurei o fio prateado com firmeza e embora ele teime em continuar me arrastando, descobri que tenho algum controle sobre ele. Quando o tomei em minhas mãos, o brilho cintilante fez com que eu pudesse enxergar novamente meus pés, como há voltas e vozes antes não podia.
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Desde aquele dia, enxergo o passo seguinte e vou para onde eu quero. Vezenquando, ainda olho para trás. Passo os olhos rapidamente pelas coisas boas, para que elas façam todo o peso e esforço continuarem valendo a pena. Demoro o olhar um pouco mais nas oportunidades perdidas, nos momentos que eu deixei passar e nas pessoas que eu deixei pelo caminho. Pois embora eu não possa buscar o que ficou, ainda posso tentar fazer do passo seguinte o meu melhor, e tentar outra vez.

domingo, novembro 16, 2008

MacArthur Park

Não acredito nisso, pensei enquanto desligava o computador. Eu tinha finalmente destrancado algumas portas do meu coração e o imbecil simplesmente não decidiu se queria entrar. Senti-me uma adolescente à beira da rejeição. Não sabia o que eu estava amaldiçoando enquanto escovava os dentes caminhando pela casa às duas horas da manhã – a minha estupidez ou a dele. “A minha”, murmurei com pesar ao lavar o rosto e encarar-me no espelho.
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A proposta ainda estava de pé. Ele me ligaria, claro. Ele tinha que me ligar. Ele só deveria decidir o que queria primeiro. O fato de ele estar no controle da situação fez a minha garganta queimar, abafando um grito. Deitei na minha cama para não desmaiar de horror – eu estava vulnerável, de novo. Liguei meu mp4 no último volume, encontrei a banda mais fossa que tinha ali (Creed) e deixei no repeat. E como não poderia ser mais patético, eu cochilei com o celular na mão.
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Acordei lentamente enquanto meu travesseiro vibrava debaixo da minha cabeça. Alguns segundos depois eu percebi que era o meu celular e que minha mão estava quase sofrendo necrose. Era uma mensagem, não de quem eu esperava que fosse, mas de quem eu precisava agora. A mensagem dizia: "Acabei de chegar da festa dos meus tios, às 8h vou correr, que ir? Te espero por 10 minutos". Incrível como ele já sabia que eu iria me atrasar e chegar dez minutos depois.
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Olhei no relógio e eram três horas da manhã. Ele era mesmo um atleta, hã? Não precisei pensar duas vezes, meus dedos já estavam correndo pelos botões do celular. Mesmo inconsciente eu saberia aquele número. Ele atendeu na primeira chamada. Eu não precisava dizer mais do que algumas palavras: “Você pode me encontrar agora?” E a frase nem deveria ter terminado com uma interrogação. Não importava quando nem onde nem como, eu sabia que ele estaria lá.
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Ele já estava sentado na calçada quando eu abri o portão. Sorriu para mim como se eu não fosse louca e me ofereceu a coca-cola que ele estava tomando. Eu me sentei ao lado dele e dei um gole. Ele me abraçou e perguntou: “O que aconteceu?” Só ele sabia como arrancar minhas máscaras com tanto carinho. Como eu poderia me opor? Ele me conhecia melhor do que eu mesma.
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Contei tudo em detalhes. Ele ouvia atento e sério, embora tudo aquilo fosse uma confissão de uma não-adolescente em crise. Quando terminei minha peripécia, eu já estava sorrindo. Mas ele, para a minha surpresa, não parecia muito divertido.
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- Por que você ainda dá bola pra esses babacas? – ele perguntou e o sorriso sumiu do meu rosto.
- Eu não sei... Eu achei que dessa vez eu estava apostando em algo seguro – respondi com tristeza, porque a decepção na minha voz era verdadeira.
- Eu fico feliz que você tenha superado a fase dos bad boys. Mas por que você tem que apostar nos nerds inseguros? Não dá pra encontrar um meio-termo? – ele perguntou, mas com um sorriso dessa vez. Ah, o poder de acalmar que aquele sorriso exercia sobre mim.
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Eu ria em voz alta enquanto ele comentava sobre o meu péssimo gosto para homens. Eu não precisava dizer em voz alta e ele não precisava me confirmar: o meio-termo era ele, sempre foi. O primeiro, o maior, o melhor. Ninguém, jamais, o destronaria.
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Estava quase amanhecendo quando voltamos para nossas respectivas casas. Só quando me afastei dele percebi o quão frio estava. Nenhuma novidade. Quando aqueles braços protetores me deixariam passar frio? Nunca! Lembrei-me de que estava com a jaqueta dele. Respirei fundo no tecido, transformando aquele cheiro que me era tão familiar numa memória. Joguei o celular em qualquer lugar e me deitei novamente em minha cama. Agora era aquela jaqueta que ocuparia minhas mãos. Uma prova de que mesmo depois de todos os amores da minha vida, ele sempre seria o maior e eu nunca saberia dizer por quê.
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Você deve estar se perguntando por qual motivo nós não estamos juntos agora. Eu te contaria, mas essa... É uma outra história.
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“Spring was never waiting for us, dear
It went one step ahead as we followed in the dance”

sábado, novembro 01, 2008

Be Kind, Rewind

Ainda mais complexos que os relacionamentos fictícios dos livros de Stephenie Meyer, são os reais. Eu nunca pensei muito em como toda essa história de colegial acabaria. Eu nunca fracionei o quanto eu sou apegada a cada expressão, a cada riso exclamativo, a cada abraço urgente. Veja, eu ainda riscava os dias do calendário com ansiedade para que o ano acabasse, até hoje. Hoje, um dia de duas provas e entra-e-sai de professores como outro qualquer, eu notei o quando vou sentir saudade de toda essa cacofonia agitada.
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Não mais encontrarei os mesmos rostos sonolentos e os sorrisos fáceis como os meus. E esse fato, o reconhecimento dele, fez doer em lugares que eu nem sabia que existiam dentro de mim. É o apego de novo. O apego mais cruel – o apego inconsciente. Você não precisa ser um leitor assíduo deste blog para saber que o meu dilema diário é o desapego. O apego que eu não sou capaz de negar; o desapego que é saudável exercer.
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Até hoje de manhã antes de atravessar, ainda uma vez, os portões do estacionamento do colégio e subir as escadas em direção à sala de aula, eu acreditava, de fato, que estava curada desse bem incômodo. A palavra soará piegas, mas vá lá: eu acreditava ser imune ao amor, ao apego, ao medo de perder o quer que fosse. Até hoje de manhã eu tinha a glória dos inconfiáveis, pois não se deve confiar naquele que não tem nada a perder. Mas eu tenho. E não só tenho algo a perder, eu perderei.
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Ainda tenho algumas semanas, mas serão poucas. Eu preciso que eles, meus amados amigos de todos os dias, saibam disso. Preciso que saibam que a minha apatia matutina e as minhas poucas frases, em sua maioria sarcásticas, são elementos de uma máscara de auto-preservação inútil que eu coloquei e esqueci de retirar, mas que não me fez esquecer de como me sinto debaixo dela e nem de quem eu sou e do quanto eles fazem parte de mim.
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Embora o nosso fim como sociedade-alternativa-anti-popularidade aproxime-se a cada palavra escrita e frase dita, o nosso elo não se perderá. Sempre levaremos a lembrança saudosa das testemunhas de nossas fases mais bizarras, da rebeldia, dos hormônios em fúria, das conversas fora de hora, dos comentários inapropriados, das propostas à legalização da maconha, das aulas de sexo do “Pssô Willah”, das encenações da “Professora Cretina”, das palavras de baixo-calão do “Vô Alencar” entre tantas outras barbaridades que nos pertencem, porque estivemos lá. E porque, para todos os propósitos, construímos memórias que estarão conosco, muito além do tempo e espaço.
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No dia 21 de Dezembro de 2008, daremos um último show. Uma vez que é fado, que está sacramentado, deixemos que a chuva de prata caia, que as cortinas se fechem e que as luzes se apaguem. De ontem em diante seremos o que somos no instante agora.
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Meus meninos nerds, minhas meninas impossíveis, meus vagabundos e preguiçosos, eu amo todos vocês. Quando a vida nos oferece um sonho muito além de todas as nossas expectativas, é irracional lamentar quando chega ao fim. E ainda assim, vou sentir saudade. Cuidem-se. Um beijo de esmagar as maçãs do rosto, e um abraço daqueles urgentes.
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sexta-feira, outubro 24, 2008

Proposta Entorpecente

Sala de aula. Último período. A professora recolhe sua caixa de giz e diz: "Então a proposta de produção de texto fica para a próxima semana, certo?". Um sim coletivo é respondido entre bocejos. A professora mal havia alcançado o corredor e os alunos já estavam de pé, rabiscando a lousa e conversando aos berros pelo simples prazer de ferir meus tímpanos. Me virei depressa para encarar o rapaz da carteira de trás, antes que ele se juntasse a seus amigos barulhentos e exclamativos.
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Balbuciei algo sobre minhas idéias para o texto. Ele concordou com meus argumentos, com aquela expressão fria e cética que endurecia seu rosto sempre que o momento se tornava íntimo demais. Continuei tagarelando enquanto tomava um verdadeiro porre de coragem. Meus pés sambavam impacientes. Meus dedos deslizavam pelos meus cabelos uma vez e de novo. De repente, eu não sabia o que fazer com minhas mãos. Isto me desconcentrou e eu apertei meus lábios. Agora tudo era um borrão e eu só queria sair correndo dali. Ao invés disso, congelei. Os lábios dele estavam movendo-se, sua voz preenchendo o silêncio que eu havia deixado. Seus olhos nunca de fato tocavam os meus, apenas passavam ligeiros pelo meu rosto e depois desviavam para suas próprias mãos sobre a mesa. Reparei que ele estava tão desconfortável com as poucas polegadas que nos separavam quanto eu. Mas o que havia de errado em olhar para mim? Eu adorava olhar para ele. Quando seus olhares não acorrentavam os meus, eu tentava decorar seus traços e imaginava a textura que sua pele teria em minhas mãos carinhosas. A vida poderia ser apenas isso, olhar para ele. Seu desconforto ainda me incomodava, me aborrecia. O que ele temia encontrar em meus olhos, afinal? Minhas palavras eram ensaiadas, mas meus olhos jamais mentiriam para ele.
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O silêncio retornou, constrangedor dessa vez. Ele ergueu os olhos e me encarou, seu rosto era ilegível. Enquanto seus olhos carregavam os meus, num instante infinito, sorri um sorriso torto, envergonhada, meus lábios partiram-se. Agora! Mas ficaram ali partidos e silenciosos. Seus ombros curvaram-se enquanto ele aproximou seu rosto do meu, com olhos curiosos. Seu hálito soprava quente e doce em meu rosto. Eu precisei me lembrar de respirar.
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Seria fácil agora, sem grandes esforços de ambos os lados. Todas as células do meu corpo sabiam o que fazer. Cada centelha do meu ser sabia o que eu queria. Eu já não precisava saber o que fazer com as minhas mãos - elas estavam fadadas a deslizar pelos cabelos dourados do dono daqueles olhos que me aprisionavam, que me desejavam com urgência de repente.
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"Então?", ele disse, permitindo reticências.
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Eu sinto muito. Eu fui uma tola. Eu senti tanto a sua falta, todos os dias. Você era parte da minha vida, porque simplesmente queria estar nela. Você era parte do meu sofá, da minha varanda e do quadro que aquela vista pincelava. Você era a melhor parte de mim. Eu estraguei tudo. Eu não te dei valor. Eu provavelmente não mereço o seu perdão. Mas se eu não te pedir para ser meu agora, vou me arrepender pelo resto da minha vida. Porque eu sei, no meu coração, que você é o único para mim.
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Eu precisei piscar algumas vezes enquanto fiquei de pé num salto, agradecendo por existir um chão sob os meus pés. Respondi por cima do ombro enquanto caminhava em direção à multidão efusiva que se encontrava rabiscando a lousa: "O Capitalismo é mesmo uma merda".
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Mergulhei no aglomerado humano e desejei ser pisoteada antes que o meu bom senso me traísse novamente.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Consertos e Reparos

“Preciso consertar essa gaveta”, resmunguei pra mim mesma enquanto organizava a mochila e dobrava as roupas para a repetição maçante do dia de amanhã. Não lembro desde quando essa gaveta está desse jeito. O puxador vem na mão da gente quando tentamos abrir. Ciente deste incômodo, coloquei na gaveta utensílios raramente usados: canetas sem tampa (mas muito úteis quando, ao telefone, recados precisam ser anotados com urgência), cola, durex, grampos, este tipo de coisa. Encaixei o puxador no lugar, sentei na beira da cama e dei uma olhada ao redor do quarto. Minha estante de livros provisória está para desmoronar de tantos livros. “Preciso de uma estante maior”. O criado-mudo ao lado da cama se parece mais com um estagiário escondido atrás de pilhas de livros e revistas. Sim, preciso mesmo de uma estante. Um pé da minha cama está sem um parafuso e vez ou outra eu tenho que dar uns chutes para o estrado não cair. “E essa pintura adolescente na parede?”, o pensamento me fez sorrir. “Nunca deixe de sonhar!!!”, é o que está escrito em letras de formato engraçado na parede. Eu ainda gosto do lilás, mas não esponjado desse jeito. Quero lilás em tudo, condensado. Gosto das ondas e das flores que a decoradora amadora fez há uns anos atrás. Queria pendurar em molduras escuras as fotos dos meus atores clássicos favoritos - todos mortos, claro. Também tem estas pinturas tão bonitas de Modigliani e Renoir. Tanta coisa a ser feita...
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Aí eu viro para a Bruna e falo, sem gozação: “Tô com uma preguiça de viver ultimamente”. Ela arregala os olhos, incrédula – infelizmente, a convivência a tornou apta a reconhecer a ironia no meu tom de voz, e neste caso, a ausência dela -, e diz: “Pára de falar bobagem! Você é jovem demais pra ficar dizendo essas coisas!”. Uh, ela se irritou. Ela sempre se irrita quando me vê miserável, mesmo com toda a paciência que sempre tem comigo. Eu dou uma risada convincente, e mudo de assunto. Ela não pode entender. Talvez eu não esteja me expressando corretamente. Deixo ela e as outras mulheres na mesa tagarelarem sem mais interrupções. Às vezes, elas até me distraem. Embora a maioria saiba que eu não estou ali. Algumas vezes a minha distância as incomoda e elas me sacodem, fazem piada, arrancam algumas risadas involuntárias. E então eu volto pra elas, porque uma coisa é me sentir miserável, outra bem diferente é fazer com que os outros se sintam do mesmo modo. Eu me importo com elas, não quero que elas se preocupem comigo. Eu nem mesmo sei do que reclamo tanto, e isso que me cansa e me aborrece cada dia mais.
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Que mal eu fiz aos deuses todos?
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Fernanda e Bruna criaram uma solução: preciso de um namorado. Eu geralmente falo algo irônico/erótico que as fazem rir freneticamente quando elas mencionam tal solução descabida. Se o meu problema fosse carência, os dias seriam todos azuis. Mal elas desconfiam que isto é apenas uma estratégia infalível para mudar o rumo da conversa, e principalmente, o tema: eu. Namorar é legal, tem suas vantagens; mas não é pra mim. Eu gosto de ficar sozinha, sou egoísta. Ah, nem vou começar a enumerar os motivos para não ter um namorado.
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Nada de holofotes, por favor. Poupem o tapete vermelho para os que não tropeçam com freqüência.
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Veja só, comecei escrevendo sobre a decoração do meu quarto/batcaverna e terminei falando sobre a consultora de moda e a nutricionista – futuras, pelo menos – que me arrastam, sem reclamações, pelos dias entediantes. Será que algum dia eu vou escrever algo que realmente faça algum sentido? Algo construtivo?
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Não responda.
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Sobre a decoração, esqueça o que foi dito. A gaveta vai continuar quebrada por algumas décadas e a estante ainda agüenta o peso das palavras até o fim do ano. O quarto, bom, ainda é lilás. Vou ignorar a frase escrita na parede como faço com todo o resto, apagar a luz e dormir, desejando sonhar em acordar ontem, ou na semana passada, ou no dia em que os dias eram ansiados.
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quinta-feira, agosto 28, 2008

O poder dos morangos

Era noite. Eu voltava do mercado em passos descompassados, tropeçando pelos paralelepípedos salientes da rua tortuosa. Entrei no carro e abri todas as janelas, desejando que o vento forte e gélido arrastasse aquela imagem da minha mente. Fechei os olhos, levando as pontas dos dedos às têmporas. “Por que o tormento sempre retorna?”, perguntei atônita para a minha incompreensão. Esta me ignorou enquanto o carro já estava freando na porta da garagem de casa. Peguei as sacolas no porta-malas e bati a porta com raiva, talvez um pouco rude demais. Subi as escadas batendo os pés. Senti o céu escurecendo dentro de mim, ouvi rugidos baixos vindo do meu peito. O som que as sacolas fizeram ao chocarem-se com o chão da cozinha camuflaram o trovão que explodiu dentro de mim. Sentei na banqueta da cozinha e me encolhi cruzando os braços. “Por que comigo? Por que não some?!”, resmunguei furiosa pra mim mesma. De tantos mercados de tantos bairros de tantas cidades, ele foi entrar logo no meu. Era o erro do passado ressurgindo, simpático, bem no meio do meu recomeço.
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Senti minha cabeça rodar e minhas narinas arderem, a chuva torrencial estava para desabar dos meus olhos. “Não!”, gritei por debaixo do fôlego. As nuvens negras dos meus olhos pressionaram, encharcadas, mas recuaram com o horror do meu tom. Ajoelhei no chão e comecei a desfazer as sacolas, ou destrinchá-las brutalmente! Guardei os frios na geladeira e a fechei, com ódio emergindo das minhas palmas. Pude ouvir os frascos lá dentro balançarem e se chocarem. A platéia que podia me ouvir lá da sala de estar invadiu o ringue e perguntou-me, preocupada: “Você está bem?”. Engoli seco, minha voz não a convenceria da minha sanidade, eu apenas assenti. Coloquei o abacaxi em cima do mármore para fatiá-lo, fatiar a lembrança daquele rosto latente em minha mente. A invasora arregalou os olhos quando me viu puxar uma faca da gaveta e fechar a mesma, de novo com força demais. Controle-se, mulher! eu suspirei pra mim mesma ao notar sua reação. Levantei minha mão livre, impedindo sua aproximação, e fechei os olhos para me recompor. “Me dê um minuto, está bem?”, minha voz saiu quebrada e eu percebi que a tempestade estava à espera. Abri os olhos para encarar a mulher boquiaberta, e tentei sorrir. Ela torceu os lábios, enrugou a testa, mas se afastou sem dizer nada. Eu não convenceria ninguém esta noite. Ninguém. Nem a mim mesma. A rendição alimentou as nuvens ansiosas nos meus olhos, senti minha respiração desregular e o sangue subir para as minhas bochechas. Larguei a faca no mármore frio e me encolhi ao deixar meu corpo cansado cair sobre a banqueta novamente.
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É melhor deixar chover... de uma vez por todas. As nuvens ácidas derreteram o chocolate vívido dos meus olhos, apertei os com força, levando as pontas dos dedos às têmporas mais uma vez. Era tarde demais. A ardência nas narinas e nos olhos que sempre eram seguidas de uma tempestade incessante de lágrimas traiçoeiras percorria todo o meu corpo, fazia meus ossos virarem esponja, fazia do leão rugindo em meu peito um gatinho acuado. Sua tola. As lembranças enterradas e adormecidas na minha alma despertaram, atravessando minha mente, velozes, astutas, golpeando-me por todos os ângulos. Gemi um choro silencioso, reconhecendo aquela dor antiga. E, de repente, imagens turvas de uma menina pintando os lábios para impressionar alguém; uma menina corando com elogios ocasionais que lhe eram feitos, recebendo com carinho e admiração mentiras sinceras, restos e sobras. Uma última imagem, mais nítida e recente do que as outras, passou por mim agora, demorando um pouco mais para escurecer, prolongando o misto de agonia e prazer – se despedindo. Um rosto quase esquecido, pouco à vontade, sorrindo, tímido: a cena final de um curta-metragem surreal. “Ainda uma vez, adeus”, eu murmurei.
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Duas lágrimas caíram: uma pelo que poderia ter sido; outra por o que não foi. Abri os olhos, piscando repetidas vezes, limpando a visão da realidade nua e simples da minha cozinha. Apoiei minha cabeça nos joelhos e deixei os fios longos e embaraçados do meu cabelo colidirem com o chão. Sorri. Sorri largamente agora. Joguei minha cabeça pra cima, retomando minha posição. Não foi um roteiro muito criativo, não é? pensei, divertida. Que curta-metragem desconexo nossa história tinha sido. Nossa não, minha. Ele não envelheceu nem um dia, queira Deus que ele fique bem. Alma lavada.
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Voltei-me para o meu lado de dentro, analisando os estragos que esta tempestade devia ter feito. Hum, nada mal. Sorri de novo, com humor. Apenas uma velha cicatriz dolorida na minha alma, daquelas primeiras feridas da imaturidade. Pobre menina remendada. Respirei fundo antes de voltar para o abacaxi em pedaços e para os morangos recém-lavados sobre o mármore. Ah, enfim. Sorri pra mim mesma uma última vez esta noite, aspirando o cheiro delicioso das frutas na minha pele, sentindo o gosto doce e cítrico na minha língua – o gosto que a vida tinha, e que sempre haveria de ter.
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Agora já não me importava quantas vezes mais o azedume do amor se faria presente no meu ser, no meu ego ferido. Na estrada dos que não se abandonam, sempre haveriam morangos.
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'cause without the bitter, baby
the sweet ain't as sweet.

terça-feira, julho 29, 2008

Molduras vazias

São tantas as preciosidades emolduradas entre as rachaduras do meu peito. Eu sei que eu não deveria me apegar tanto ao surreal, ao fictício... Mas me apego. Porque às vezes, não de forma pejorativa, mas milagrosamente, isso é tudo o que eu tenho. Os livros favoritos espremidos nas pequenas prateleiras, as coleções de arte espalhadas displicentemente pelo criado-mudo, os filmes escorregando pela madeira lisa da parte mais alta da escrivaninha. São coisas perecíveis, desnecessárias, você diria. Mas tê-las com exclusividade é um alívio tão grande. Elas, minhas preciosidades, sustentam as bases precárias do meu ser. Como se eu pudesse fazer das minhas costelas prateleiras seguras e da minha pele pálida uma vidraça blindada, nublada. Afinal, os grandes tesouros devem ser enterrados bem fundo e a superfície camuflada.
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Ah, o silêncio. O silêncio pode ser tão mais reconfortante do que as palavras imponderadas das pessoas. Pessoas podem ser tão inconsequentes, tão irresponsáveis, tão perigosas. Você já entendeu, não? Eu sempre faço muitos floreios antes de chegar a lugar nenhum. Sou incorrigível. Mas a verdade é que a grande maioria das pessoas, tão humanas e calorosas e com, ao menos, uma faísca de bondade dentro delas, são na realidade criaturas míticas com punhais nas mãos e veneno nos caninos. Se não te machucam fisicamente, certamente machucam a melhor parte de você, aquela parte que você se permitiu esconder. E o silêncio surge de novo, convidativo e suave demais para ser quebrado.
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Em dias como este, aparentemente ensolarados e casuais, eu me lembro que já pilotei aviões enormes, uma porção deles, em condições desfavoráveis. Lembro o quanto as pessoas neles se pressionavam sobre mim até que eu mergulhasse céu abaixo. Eu bati a 200 km/h e voltei pra casa, avariada. Mas nunca houveram outros sobreviventes. Teria eu os matado? Não, em dias como este tudo se esclarecia: ninguém nunca bateu o rosto na aspereza voraz do asfalto comigo. Todos sempre saltavam antes, de pára-quedas, e dançavam no céu, se afastando das nuvens até atingirem o chão do outro lado da fronteira que eu nunca pude cruzar.
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E eu me sinto bem por isso. Não houveram ossos quebrados nem grandes hemorragias - talvez alguns soluços nos primeiros dias, mas só. Enfim, em dias como este, quando o sol sonolento se deita radiante, eu vejo a minha sombra se alongando pela estrada e, apesar de nunca ter sido capaz de emoldurar rostos uma vez queridos entre as rachaduras do meu peito, eu me lembro de não parar de caminhar. E de tentar outra vez.

domingo, julho 13, 2008

Viva lá revolución

"Alguns exibem sua beleza porque querem que o mundo a veja. Outros tentam esconder sua beleza porque querem que o mundo veja outra coisa".
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Foi este trecho de "Quatro Amigas e um Jeans Viajante" que fez o filme todo valer a pena. Trecho que me fez refletir por quase três dias inteiros e que me fez, pela primeira vez na vida, sentir orgulho da minha impopularidade, da minha timidez e de tantos outros caracteres em mim que já me fizeram nomeá-los "maiores defeitos".
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Talvez o meio em que estamos realmente nos afete, talvez seja esta sociedade moderna, exibicionista e tão cruel para com os que recusam-se a aceitá-la. Sim, de fato, penso que sim. Desde crianças aprendemos a como nos comportar, aprendemos sobre o falso moralismo tão divulgado e aceito por nós. Assimilamo-o e a ele nos submetemos. Quantas vezes me perguntei se eu era a única a encontrar na juventude um erro e uma ignorância de proporções catastróficas. Por que esta necessidade de sermos aceitos por todos ou, pelo menos, pela maioria, nos submete a tão terríveis alienações? Vejo isto em meus próprios amigos e seus Orkuts, Fotologs, etc. Vejo isto em mim. E, de repente, sou a mais tola das pessoas. Eu tentei me adaptar à sociedade dos boatos e rumores, das conclusões precipitadas. Mas devo dizer que me recuso a participar por mais tempo deste tão convidativo espetáculo de outdoors. Felizmente, não tenho mais o receio de me impor contra tão tolas generalizações. Sou do contra, sou de esquerda. Que minha boa reputação seja queimada em praça pública. Que minha doçura, meiguice e tolerável beleza sejam esquartejadas aos olhos daqueles que são de tal opinião a meu respeito.
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Nunca fui de ter rédeas ou de me deixar conduzir, mas o fazia pela boa aparência que a todos causava, o fazia principalmente para passar despercebida, para ser invisível, insignificante até. Sempre guiada pelo medo de deixar às claras minhas jovens, mas ainda assim firmes, opiniões. Medo este que a minha dita maturidade fez o favor de dizimar. Hoje tenho o imensurável prazer em dizer que não pertenço a um bando, uma banda ou à um grupo específico; minha consciência é minha doutrina.
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Não acredito que mais de cem comentários em meu Fotolog, mais de vinte mil recados em meu Orkut e mais de trezentos amigos online farão de mim uma pessoa melhor ou mais agradável ou, que farão de mim melhor cidadã, melhor ser humano. Veja, não estou criticando quem possui todos esses artifícios: estou criticando quem os têm pelas razões erradas. Nossas singularidades e excentricidades são o que nos tornam únicos, o que nos tornam interessantes. Estes sim, em minha concepção, são os verdadeiros artifícios que têm, ou pelos menos deveriam ter, valor. E esse foi apenas o exemplo mais corriqueiro que surgiu em minha mente daquilo contra estou, no mínimo, revoltada.
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Mas não me dê ouvidos, ó caro leitor, e não desperdice nem mais um minuto de seu tempo comigo. Sou pessoa extremamente taciturna e de pouca importância nesta enorme esfera virtual: não vou adicionar se não me deixar um scrap.

domingo, junho 22, 2008

Como nossos pais

A instabilidade do relacionamento de meus pais, agora eu vejo, me influenciou a vida inteira, e ainda influencia. Digo "ainda" pois até o presente momento nenhum dos dois começou a fazer as malas. Mas nunca se sabe.
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Minha mãe, eu sei, amo incondicionalmente, e não me importo com o clichê da palavra. Me dói saber que ela sacrificara tanto de sua vida por mim e pela minha irmã. Porque veja, ela só fora verdadeiramente - ou suficientemente - feliz durante os primeiros dois anos de seu casamento. Ela casou-se ainda tão jovem, tão desamparada por sua própria família... E este fato acarreta em mim uma culpa ainda maior.
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Não sei o que houve após estes dois primeiros anos de casada. Penso que o fracasso desta união se mostrara já naquela época, mas ninguém admitiu. Depois disso minha mãe se submetera a uma vida de alienação, como dona-de-casa, como mãe, como esposa, como secretária de meu pai. Eles não se amavam. Nunca houve paixão. Creio que eles apenas aprenderam a conviver como companheiros de vida. Mas com a chegada da primeira filha - sim, eu - os dois se viram formando uma família, já não havia caminho de volta. Ou era como eles pensavam.
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Antes de prosseguir, é necessário falar sobre meu pai. Meu pai sempre será para mim o homem que aplicava os castigos, que me dava cintadas nas pernas quando eu o desobedecia, na infância. Os anos se passaram e eu atingi a maturidade, parando assim de desobedecê-lo, tentando desesperadamente deixá-lo orgulhoso sempre que possível. Não tivemos relações mais próximas desde então. Mas, por favor, não construa a imagem de um pai ausente: ele dormia em casa todas as noites. Como vê, por minha parte quase não tenho do que reclamar: ele sempre pagou as contas e nunca atrasou uma mensalidade do colégio particular em que estudei. O mesmo tem sido para minha irmã. Levamos uma vida confortável. Não há o que eu não peça ou deseje que ele não procure me dar. Talvez esta seja sua maneira de demonstrar seu amor de pai. Amor este que eu duvido existir algumas vezes.
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Meus pais completaram 22 anos de casamento na última sexta-feira sem maiores comemorações. Passado estes 22 anos, eles têm uma casa grande e confortável, dois carros na garagem, duas motos, dois cães e por último, porém não menos importante, duas filhas com a diferença de dez anos entre elas. Então me vem a mente as palavras: divisão de bens. Será tão fácil dividir uma vida inteira em duas partes iguais? Durante todos estes anos o casamento deles entrou em um círculo vicioso de tentativas mal-sucedidas para fazer da certo. Embora discutissem e decidissem pela separação, no dia seguinte voltavam atrás e permaneciam juntos até a próxima discussão. Eu me pergunto se não será esta apenas mais uma dessas idéias sem braços. E não sei a resposta. Tudo que sei, é que um arrastou o outro através dos anos, dos natais, feriados e páscoas, ambos submersos em sua particular infelicidade e insatisfação, a negar o fracasso presente em suas vidas. Permaneceram juntos mais pelas circunstâncias, pelas filhas e bens do que pelo sentimento.
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Não gosto de expor minha família e minha história dessa maneira, pois não tenho como defendê-los do julgamento que você, ao ler este texto, poderá fazer. Não é vergonha nenhuma para mim tê-los como pais, juntos ou separados. Não é vergonha admitir meus problemas e minhas fraquezas, mas a verdade é que não há o que eu não faça por eles. E se escrevo é para tentar esclarecer e organizar meus pensamentos. Contraditoriamente, sou mais forte diante dos problemas maiores do que dos cotidianos. E concluo, enfim, que não há o que eu possa fazer além de esperar que eles resolvam suas vidas da melhor maneira possível. Apesar de todos os pesares, eles são a minha família e o meu único vínculo com o passado. E desejo, otimista e ansiosamente, carregá-los em direção ao futuro. E que venham os advogados.

quinta-feira, junho 19, 2008

Mutante Mulher

A esperança que restou encontra abrigo e abraço na minha convicção de que, mais cedo ou mais tarde, inquestionáveis verdades serão estas descaradas mentiras que eu me conto diariamente. Já não tenho religião nem identidade. Sou nômade. Já não me alcanço de tão longe que fui. Já não conto as horas deste vôo sem escalas.
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But don't you worry.
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O meu suposto sofrimento é crônico, e é só meu. O meu egoísmo é tão abrangente que não deixa esse sentimento se esvair. É meu. O meu amor, o meu ódio e a minha loucura... São todos meus. E o que é meu eu não divido. Nem mesmo com os que me despertam tais sentimentos, tais sensações.
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But don't you dare.
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A minha instabilidade é o meu veneno e o meu antídoto. Me reconstruo. Me reinvento. Sou o pior e o melhor que há no mundo, assim sem poesia. Sou sonho em carne viva. Não me recomendaria.





Me sou conveniente.
Me sou suficiente, e só.

domingo, junho 15, 2008

Dia dos Namorados

Depois de tentar se distrair assistindo a um filme no cinema, fazendo compras e suando na academia (onde só haviam casais estupendamente apaixonados, de todos os tipos: emos, homos, heteros, etc.), ela resolveu afogar suas mágoas - e o dia dos namorados, claro - em uma xícara de café expresso, na mesma mesa para dois, da mesma padaria, da mesma esquina de todas as sem-saídas. O mais irônico, pensou, é que não importa quantos relacionamentos aparentemente bem sucedidos ela tenha no decorrer do ano, não houve um só dia dos namorados em que ela pôde comemorar algo mais do que seu sucesso em não conseguir manter uma relação até o mês de junho.
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O ambiente, como você pode imaginar, servia de abrigo a outros desafortunados solteiros. Uma meia-dúzia de mesas para dois ocupadas por apenas uma pobre alma. Se sentiu engraçada quando se deu conta disso. "Estou ficando experiente em dialogar com cadeiras vazias", voltando seu olhar para a xícara de café. "Deus queira que eu não seja a única" sorriu em voz alta e ergueu os olhos, ainda com um sorriso de auto-piedade esboçado em seu rosto corado pelo frio que fazia.
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Exatamente às doze horas, bem à sua frente, estava um outro coffe addicted a exercer o mesmo árduo trabalho de adoçar o café girando a pequena colher de plástico em sua borda, o mesmo a que ela se dedicava naquele instante. Ele sorriu de volta, mesmo sem encontrar a graça da colher de plástico, e tinha tantos dentes na boca, lábios levemente avermelhados e tão lindamente desenhados, que ela continuou sorrindo sem notar. Ele era uma mistura de Strokes com Oasis, impossível de criticar. Caras tristes com guitarras, o tipo dela. A barba estava por fazer, o cabelo desarrumado - e poderia ser melhor? -, convenientemente sozinho... "Marry me, babe", ela pensou.
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Então ele disse "Oi", com um aceno ligeiro e um sorriso longo. Ela respondeu "Oi", rindo nervosamente e desviando o olhar. "Meu nome é Guilherme" ele disse, cruzando os braços sobre a mesa. "O meu é Gabriela" ela respondeu, colocando mais açúcar no café. "Café amargo?" ele perguntou. "Dia dos Namorados", ela respondeu com um sorriso amarelo. "Eu ia perguntar se o seu namorado está atrasado, mas eu gostaria tanto que você não tivesse um", ele disse descruzando os braços e relaxando na cadeira, fitando-a com aqueles olhos pequenos mas tão vivos. Nesse instante ela fez-se defensiva e chegou a pensar em ir embora, mas lembrou-se de quem a esperava em casa: seu vira-lata Bruce. Ouviu uma voz interna dizendo "Pare de ter medo de viver, mulher".
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"Então você deve estar com sorte hoje"- pasme, ela respondeu ao flerte. Ele sorriu novamente aquele sorriso de tantos, tantos dentes. "Eu posso...?" ele perguntou, incerto da resposta que viria, apontando para a cadeira vazia na mesa dela. "Por favor" ela respondeu desfazendo-se da insegurança. Ele levantou-se e atravessou o abismo que os separava. Ele vestia uma calça jeans, um moleton cinza e um all star surrado - maior abandonado.
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Eles se olharam em silêncio por um instante, depois começaram com o básico: o que gosta de fazer, de ouvir, de ler, de assistir. "The O.C., não? Tenho a primeira temporada", ele disse. "Alguma cena favorita?", ela deu continuidade. "Primeiro capítulo da primeira temporada, eu acho, primeiro encontro de Ryan e Marissa". "Ah, sim! Uma das minhas favoritas também", ela comentou e, um segundo depois, decidiu brincar com a intertextualidade: "Se eu sou Marissa, quem é você?" ela perguntou fitando-o desconfiadamente. Ele leu seus pensamentos, como já havia feito tópicos antes e, levando a colher de plástico ao canto direito da boca, com os cabelos caindo nos olhos, ele respondeu: "Quem quiser que eu seja". Ambos gargalharam e sorveram as horas daquele encontro inesperado.
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O irônico era que, a cada palavra dita e informação trocada, tudo que podia ser comprovado era o quanto eles eram parecidos. Em sorte e azar, em filme e música. E como eram singulares em seus respectivos mundos, agora colidindo sem querer, e querendo tanto. Ininterruptamente, sem poder evitar. Ambos atraídos pela emoção que encontravam um no outro e que, insaciavelmente, podiam dividir.
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Somehow we've find
You and I have collide

sábado, junho 07, 2008

Afraid so

Ainda me lembro de quando tinha meus treze ou catorze anos e atravessava madrugadas ouvindo a mesma música repetidamente, e pensava que se eu pudesse escrever algo bonito, honesto e verdadeiro, alguém me amasse. Eu também canso de ser piegas e "a joke of a romantic", mas era como eu me sentia. E, surpreendentemente, como me sinto neste instante.
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Ao lembrar desses tempos, é inevitável não lembrar do meu primeiro amor. Deus! Quantos filmes, quantas linhas mal traçadas, quantas músicas, quanta intensidade. Gostaria de poder falar sobre ele, sobre o que ele gostava de fazer além de me extasiar, pequenos gestos, peculiaridades; mas não consigo. Não consigo porque, na verdade, o conheci muito pouco. Eu pensava o conhecer integralmente, mas a verdade é que ele não ficou tempo suficiente na minha vida. Não tenho do que reclamar. Com a mesma intensidade que veio (perseguição, ciúme virtual, declarações desesperadas por MSN), também foi (dias sem comer, dias sem dormir, semanas para eu me adaptar ao vazio).
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Depois dele vieram paixões menores, e ainda assim avassaladoras. Duradouras foram as que duraram pouco mais de um mês. De repente, me acostumei a não sentir nada. Escrevia displicentemente, assim, para ninguém, afim de não me diagnosticar um enorme vazio coberto por uma tênue camada de piadas inteligentes, humor irônico e frases decoradas. Foi aí em que eu descobri a efemeridade das coisas.
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E nesta fila estafante do correio eu permaneço. Nenhuma destas faces desconhecidas parece ter segredos para mim. Por quê, Ó Pai? Por que não sentir nada é tão mais fácil, tão racional, tão auto-sustentável? Por que esse misto de sensações indescritíveis chamado amor soa ridículo, mas ridículo mesmo, quando sai da minha boca? Por que eu não consigo acreditar em mais nada, em ninguém? Por que pentear o cabelo, beber água, sonhar - por Deus, até mesmo sonhar - se tornaram coisas tão banais?
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Uma vez me disseram que depois dos dezoito anos eu iria querer voltar no tempo. Bom, nem precisei chegar lá para me dar conta de que fiz tudo errado. Meu Deus, eu fiz tudo errado. Eu não me reconheço, não me encontro. Só sinto um pouco de paz quando deitada de barriga para cima na calçada, conto estrelas. Fingindo não morrer de medo da imensidão azul-marinho diante dos meus olhos. E peço fervorosamente, murmuro, para que aquela imensidão se torne mar e me engula. É assim que me sinto todo o tempo, fingindo não morrer de medo da banalidade das coisas, da efemeridade dos bons momentos, da invalidade dos velhos tempos.
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Saio correndo do caixa 3 enquanto a apática atendente me substitui: "Próximo!" Corro pelas calçadas, atravesso a rua. Um casal de idosos sorri para mim, eu sorrio um sorriso desesperado. E tenho medo, tanto medo. Então começa a chover e eu agradeço, agradeço rindo descontroladamente. Porque a chuva mascara meus olhos marejados, se mistura às lágrimas que caem, desesperadas, querendo encontrar o chão. Abro um pouco os braços e fecho os olhos, me entrego. A chuva me fragmenta, e como estas mais honestas palavras já escritas, me carregam mundo afora. Mas ainda mais importante: me levam para um lugar desconhecido, me levam para longe de mim. Isso me acalma. E eu sigo em passos lentos, despedindo de mais um pesadelo que me pega de jeito, sem jeito e de peito aberto.

quinta-feira, maio 22, 2008

Epifania Pálida

Hoje eu acordei querendo pensar branco. Pensar em azulejo de cozinha. Azulejo de cozinha, coisa banal. Só queria pensar no azulejo branco, naquelas dezenas de azulejos brancos à minha frente. E pensar no café. Café quente, quente. Descendo pela minha garganta. Eu sentia o café quente descendo pela minha garganta e sentia quando ele encontrava morada no meu estômago. Batia no estômago e queimava, ardia! Mas quando a quentura do café fazia doer, outro gole vinha logo em seguida e queimava também. E eu me esquecia do que ardia por dentro, porque ardia por inteiro. E enquanto ardia, o azulejo permanecia branco. Branco e calmo - calmaria puritana corrompível! Sim. Corrompível. Pensava branco, era banal. Eu adorava pensar branco e sentir ferver. Adorava. Adorei.
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Saí de casa sem vontade, não muito à vontade. Saí de casa e só. Mas não só. Saí de casa e a blusa subia, a saia descia. Roupa maldita e infernal! Quis ficar nua. Quis ficar do avesso. Eu quis ficar nua e do avesso e mostrar ao mundo como por dentro ardia e doía e queimava. Eu quis, mas foi um querer rápido de quem não sabe ousar. Eu quis, mas não pude. Não podia nem comigo, que dirá com o mundo. Ponderava. Ponderei.
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Restaurante. Entrei no restaurante, tímida. A roupa incomodava e nas unhas dos pés o esmalte estava pela metade. Ninguém sabia, ninguém notava, mas me incomodava. Pensa branco, mulher. Pensa branco. Primeiro a salada. Enchi o prato de brócolis e um molho que odiei, mas não fazia mal: por dentro ardia e queimava, e do molho eu não gostava. Molho. Pra quê molho? Coisa banal. O maldito molho me estufava. É, estufava. Estufei.
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Carro, rodovia, trânsito. Maldito trânsito! Acelera, acelera! Passa por cima que eu quero chegar do lado de lá! Mas não acelerava. Emputecida eu estava, mas não sou de demonstrar. Farol aberto. Caminhos abertos. Portas abertas. Tão bonito dizer "Minha porta estará sempre aberta pra você!", mesmo sendo mentira. Mentira, coisa tão banal. Tão divertida e ilegal. Normal. Tudo que eu gosto engorda, é ilegal ou imoral. Longe eu estava, viajava. Viajei.
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"Quanto tempo! Me dá um abraço aqui". As escadas eu subi sem saber o que dizer. Mas disse. Estranho, não lembro o que disse. Perdoa, não era o que eu queria dizer. Ah, sentei. Tentei me mostrar à vontade. Mas não tinha vontade. Fuck! De repente surgiu vontade de dizer uma porção de palavrão. Por que eu não posso ser, de verdade, assim como me mostro, de bem com a vida? Pensa branco, pensa branco. Oh, motherfucker. Me distraíram. Na hora eu esqueci, mas obrigada. Obrigada por me distrair, eu estava para explodir. Obrigada. Me falaram, uma porção coisas aleatórias que eu nem precisei perguntar. Obrigada. Com ela eu fiquei extasiada. Porra, também sou assim! Obrigada. Agora eu posso sair por aí sendo eu mesma, obrigada. Não tenho regras, não tenho rédeas. Vou cavalgar! Não me procure, não me espere. Longe eu sempre vou estar. Meretriz no Alabama ou mulher-bomba em Bagdá. Não vou ficar. Não ficava. Não fiquei.
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Hoje eu acordei querendo pensar branco. De um branco sem perturbações. Hoje eu vou dormir refletindo todas as perturbações do mundo, todas as cores. Perturbada, feliz e ainda extasiada. Eu mesma, eu só. Mas não só. Eu do meu lado, aventureira. Muito louca, de um louco banal. Velho mundo banal. Mas ainda meu, meu mundo banal. Do mundo eu quero o que vier. Quero viver. E viverei.